Por: Evanildo da Silveira
De São Paulo para a BBC News Brasil
Segundo o pesquisador Felipe Melo, do Departamento de Botânica da UFPE, a região Nordeste é responsável por 86% da produção de energia eólica do Brasil, com destaque para a Caatinga, que abriga 78% de todas as turbinas instaladas no país. “É uma situação preocupante, porque esse é o bioma nacional mais vulnerável”, alerta. “Ele totaliza menos de 10% das áreas legalmente protegidas, das quais apenas 2% estão na categoria de estritamente protegidas.”
O objetivo do trabalho foi avaliar o potencial conflito de interesses entre o setor eólico, que envolve empresas do setor privado, e os governos, tanto o local quanto o federal, e o de conservação da Caatinga. “A sobreposição de áreas de interesse desses dois setores pode ser fonte de atrito, quando elas se chocam”, diz Melo. “Daí, geralmente o lado mais fraco, que sempre é o ambiental, perde.”
A pesquisa abrangeu toda a Caatinga, que corresponde a uma área de mais de 800 mil km², e todos os mais de 6 mil aerogeradores atualmente instalados e os quase 15 mil a serem construídos. As fazendas podem ter de 100 a centenas de torres, ocupando vastas áreas.
“Analisamos basicamente a localização de todos os empreendimentos eólicos no bioma, desde os já em operação até os que estão autorizados e em fase de planejamento”, explica Melo. “Mostramos que há uma enorme quantidade de usinas eólicas em áreas de interesse para a conservação. Concluímos também que existem 11 milhões de hectares de áreas de alta e extremamente alta importância para a conservação que possuem ou possuirão esses empreendimentos.”
‘Não é inofensiva’
Por isso, ele diz que as fazendas eólicas têm um lado ruim, que precisa ser entendido pela sociedade. “Gerar energia renovável mediante a força dos ventos é uma importante estratégia para que o Brasil cumpra com suas metas de desenvolvimento sustentável e precisa ser estimulada”, reconhece. “Mas, apesar de renovável, ela não é inofensiva à natureza. Há impactos sobre a fauna, principalmente morcegos e aves, que controlam pragas. Eles se chocam contra as pás das hélices e morrem.”
Além disso, há os impactos sobre ecossistemas sensíveis, como áreas montanhosas e dunas litorâneas, que são importantes e precisam ser mais bem avaliados, diz Melo. A construção de linhas de transmissão e estradas para o estabelecimento dessas fazendas igualmente causam danos consideráveis, pois destroem vegetação nativa e facilitam o acesso de pessoas a regiões, o que antes não ocorria.
“A perspectiva é que esse setor ganhe importância econômica e política no Nordeste, atuando nos Estados para conseguir incentivos para sua instalação (o que faz parte do jogo) e, eventualmente, derrubando condicionantes ambientais para seus estabelecimentos”, alerta Melo.
Ele chama a atenção ainda para a possível ocorrência de conflitos – o pesquisador cita o que o ocorreu no Boqueirão da Onça, na Bahia, uma região que aguardou mais de 10 anos para que fosse criado ali, numa das porções mais importantes de Caatinga, um parque nacional. No final, o projeto teve seu desenho totalmente alterado, ficando de fora da área de proteção justamente aquelas de interesse das empresas eólicas e de mineração.
A Ponta Tubarão, no Rio Grande do Norte, é outro exemplo de impacto causado pela exploração da energia dos ventos. O problema no local foi que, após o estabelecimento dos parques eólicos, houve conflitos sérios com moradores, por causa de mudanças no acesso à praia e da poluição visual causada pelas torres em uma zona turística, o que prejudicou essa atividade.
Além disso, em Pernambuco, Melo diz que houve retrocessos ambientais, que atribui à atuação política das empresas eólicas. “O Estado praticamente extinguiu a proteção de áreas de altitude, com a justificativa explícita de favorecer a implantação de empreendimentos privados para a geração de energia a partir do vento”, diz. “A Constituição estadual foi alterada. Antes, ela protegia locais acima de 700 metros de altitude, limite que foi aumentado para 1.100 metros. Ora, o Estado deve ter uma área equivalente a dois campos de futebol acima dessa altitude. Tudo o que está abaixo disso não está protegido.”
Melo também critica o empresariado brasileiro, que “tem pouca tradição de contribuir com agendas ambientais”. Para ele, o caso das eólicas é uma grande oportunidade para virar esse jogo.
“Imagine se em vez de gerar conflitos de interesse, o estabelecimento dessas usinas fosse um aliado na criação e implementação de áreas naturais protegidas”, diz. “Precisamos pensar que esses locais de interesse para a conservação também geram energia para todo o Brasil, e, portanto, prestam um duplo serviço e precisam de maior proteção e gestão responsável. Esse é o futuro que gostaria de ver entre Caatinga e empresas, mas precisamos mudar o paradigma vigente, no qual a proteção a esse bioma tem sido atacada para facilitar a entrada das geradoras de eletricidade a partir dos ventos.”
Planejamento
A geógrafa Adryane Gorayeb, da Universidade Federal do Ceará (UFC), integrante do Observatório da Energia Eólica (rede de pesquisadores de universidades públicas de cinco Estados brasileiros), pensa de maneira semelhante. “A energia eólica não é livre de impactos e se quisermos avançar na geração dela no país, teremos que pensar em uma melhor forma de planejamento relacionado à implantação de parques eólicos e à gestão dos benefícios sociais oriundos dessa indústria”, diz.
Entre os principais impactos, Gorayeb cita a emissão de ruído pelas hélices das torres, com consequências negativas para a saúde humana como distúrbios do sono, enxaqueca e estresse; interferência nas rotas de aves; modificação da paisagem natural e estresse cultural, com conflitos comunitários associados à alteração do modo de vida tradicional (pescadores, quilombolas, indígenas); e danos aos sistemas ambientais litorâneos, que levam ao desmonte e à compactação de dunas e do solo, aterramento de lagoas interdunares e remoção de vegetação.
Ela reconhece, no entanto, que a energia eólica é uma energia limpa, pois não emite gases que causam o efeito estufa. “Além disso, o Brasil precisa diversificar sua matriz energética”, diz. “Acreditamos que a eólica é uma boa solução de geração de eletricidade, especialmente quando pensamos nas consequências das mudanças climáticas e da matriz energética voltada à queima de combustível fóssil. Mas ela deve ser planejada e implementada de modo responsável e com justiça socioambiental.”
Para o pesquisador Luiz César Marques, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), toda forma de produção de energia em grande escala causa impactos nos ecossistemas e, em última instância, no planeta, de modo geral. “Obviamente, esse impacto será tanto maior quanto maior for o volume da energia produzida e consumida”, diz. “A raiz do problema está na escala em que se dá o consumo de energia dos 10% ou 20% mais ricos das sociedades contemporâneas. Essa minoria é a grande responsável pelos impactos sobre o clima, a perda de biodiversidade e a produção descontrolada de resíduos.”
Segundo ele, estudos demonstram já há alguns anos que o consumo dos 10% mais ricos é responsável por 50% das emissões de dióxido de carbono lançados na atmosfera, ao passo que o consumo dos 50% mais pobres responde por apenas 10% delas. “Portanto, os verdadeiros impactos decorrem do consumo extravagante de energia dessa minoria”, diz. “Mas há ainda outro fator: a velocidade alta da transição de matriz energética exigida pela emergência climática. Quanto mais rápida ela for, mais impactos causará, porque menos tempo será consentido à adaptação.”
Apesar disso, Marques afirma que mudar a matriz energética é a única saída. “Continuar nos combustíveis fósseis significa nos condenar a curto prazo a aquecimentos superiores à nossa capacidade de adaptação”, explica. “Se tivéssemos iniciado a transição energética 30 anos atrás, estaríamos hoje na posição de escolher entre diversas opções. Agora, a escolha é entre o ruim e o péssimo. Péssimo é a civilização termo-fóssil em que estamos todos naufragando. Diante disso, tudo o que nos ajudar a escapar da armadilha dos fósseis é positivo.”
Marques minimiza, no entanto, o impacto dos parques eólicos nas populações de animais alados. “Os pássaros morrem muitíssimo mais vítimas de gatos domésticos e ferais e por colisões com vidros e paredes espelhadas das cidades do que por qualquer outra razão”, afirma. “Os números são acachapantes. Nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo, houve diminuição de 29% das populações de pássaros desde 1970. Quase 4 bilhões de aves a menos desde então e isso não tem a ver com pás de usinas eólicas.”
Menos danos que as demais
Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) – entidade que congrega e representa a indústria de energia eólica no país, com mais de 100 associados –, não nega os impactos do setor. Mas lembra que não existe nenhuma atividade econômica que não cause interferências ambientais, que podem ser maiores ou menores, dependendo de cada uma. “O impacto depende do recurso que é usado. Combustível fóssil produz CO2. No caso da produção de energia renovável, você também gera CO2 ao produzir os equipamentos. Depende do que a sociedade escolher, sol ou vento”, diz.
Gannoum afirma, no entanto, que a energia eólica é uma das que causam menos danos ambientais. “Em um parque de geração, apenas de 3% a 5% da área são efetivamente ocupados pelas torres”, diz. “Além disso, ela não prejudica outras atividades econômicas, como a criação de gado ou plantações, que podem coexistir com as turbinas. Ou seja, ela é a única forma de produção eletricidade que pode ser complementar a outras atividades.”
Hoje, há em operação no Brasil 7.477 aerogeradores, instalados em 608 parques eólicos, que têm capacidade instalada de 15,1 GW e geram 200 mil postos de trabalho.
Segundo Gannoum, o país teve a vantagem de começar a usar a energia eólica com tecnologias mais avançadas, como torres mais altas, que interferem menos na migração de pássaros, por exemplo. Também tem legislação rigorosa, com resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e diretrizes dos Estados, para o licenciamento de projetos de geração de energia eólica.
“Independentemente disso, o investidor não quer mais fazer parque eólico em área de proteção e em dunas, porque ele aprendeu que o potencial do Brasil para exploração da energia dos ventos é imenso, de 800 GW [mais de 57 hidrelétricas de Itaipu]”, acrescenta. “Não é necessário construir nesses locais.”